“A alegria de ser chamado a
servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf. AG 10),
ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que tem sua base e
motivação no Evangelho”. É com esta declaração que dom Erwin Krautler, bispo da
Prelazia do Xingu, resume sua atuação no Brasil há mais de 40 anos,
evangelizando sua comunidade.
Nesta caminhada, ele esteve
engajado em diversas causas, entre elas, a mais recente, em oposição à
construção da hidrelétrica de Belo Monte. “Como bispo tenho que conviver com
diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições
opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que
professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo
sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo.
Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser”, disse o bispo
à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir,
concedida por e-mail, dom Erwin comenta a atual situação de Altamira desde a
construção da hidrelétrica de Belo Monte e acentua o comportamento dos povos
indígenas que vivem próximos ao canteiro de obras. “Aí se percebe nitidamente
que a Norte Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que
se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que
nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia
e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé?”, questiona.
Ele conta que após a
eleição de Dilma tentou agendar uma reunião com a presidente, mas ao ouvir o
discurso de Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da
Presidência da República, a favor de Belo Monte, desmarcou o encontro. “O que
ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos?
Já que a declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu
mesmo cancelei a audiência”, lamenta.
A dois anos de tornar-se
bispo emérito, dom Erwin diz que isso “não significa ‘entregar os pontos’. Meu
empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos
ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e
terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os ‘excluídos do banquete da
vida’ e minha defesa do meio ambiente, o ‘lar’ que Deus criou para todos nós,
vão continuar enquanto Deus me der o fôlego”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que avaliação faz da caminhada de luta em oposição a
Belo Monte e aos projetos de infraestrutura na Amazônia durante os últimos
anos?
Dom Erwin Krautler –
Por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável,
Rio+20, o movimento Xingu Vivo para Sempre convocou indígenas, pescadores,
ribeirinhos, movimentos sociais, estudantes e acadêmicos, ativistas e
defensores do Xingu para comemorar os 23 anos que se passaram desde o Primeiro
Encontro dos Povos Indígenas do Xingu (20 a 25 de fevereiro de 1989) em
Altamira. O evento foi chamado de “Xingu+23“ em analogia ao “Rio+20“ e quis
lembrar a primeira grande vitória contra o projeto de barramento do rio Xingu
que naquele tempo levou o nome de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó, o
povo indígena mais numeroso do Xingu. Na realidade, a luta contra o projeto é
bem mais antiga e começou já nos anos 1970 quando os militares cogitaram a
construção de seis grandes usinas ao longo do rio Xingu: Jarina, Kokraimoro,
Ipixuna, Babaquara, Kararaô e Iriri. O Encontro dos Povos Indígenas em 1989
tornou a rejeição do projeto da parte dos indígenas apenas mais visível e
chamou a atenção do Brasil e da comunidade internacional para o planejado golpe
no coração da Amazônia.
Ironia da história
Ironia da história: Lula,
que elegemos porque acreditávamos que outro Brasil fosse possível, pouco depois
de tomar posse tirou o projeto das gavetas, desconsiderando o que durante a
campanha eleitoral havia falado nos palanques sobre a Amazônia. Passou a
defender o que antes severamente criticou e a considerar o projeto hidrelétrico
no Xingu essencial para o progresso, vaticinando o colapso total da economia do
país caso não seja concretizado. Substituiu-se apenas o nome de Kararaô por
Belo Monte para ninguém mais lembrar o facão da Tuíra e os índios de 1989
pintados de urucum e jenipapo.
Não acredito que haja no
Brasil outro movimento de luta em defesa do meio ambiente contra um megaprojeto
governamental com uma história tão longa. Alguém talvez venha retrucar: “Mas,
infelizmente, lutaram em vão, já que o projeto está sendo executado a pleno
vapor e, depois de já ter gasto bilhões de reais, dificilmente o governo vai
recuar!“ De fato, a cada dia que passa mais explosões ensurdecedoras atormentam
a população no entorno do canteiro de obras. A cada dia que passa mais
destruição se alastra pela região. A ensecadeira se estende rio adentro e o
desmatamento avança nas ilhas e na terra firme da Volta Grande do Xingu. Mas,
mesmo assim, nada de enrolar a bandeira! Sabemos que Belo Monte não é a única
barragem planejada no Xingu. Nossa luta tem também por objetivo evitar que o
antigo projeto dos militares seja desenterrado na sua totalidade.
Quantos cientistas e
especialistas não alertaram o governo que o Xingu durante três ou quatro meses
no ano não terá o volume d’água suficiente para rodar uma única turbina sequer?
Muitos! E todo mundo sabe que é economicamente absurdo deixar sem funcionar as
turbinas que são a parte mais cara de todo o empreendimento. A solução reside
em mais barramentos rio acima como já foi previsto no projeto dos militares,
com impactos mais desastrosos ainda que a própria Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Esse projeto de mais barragens é tratado como segredo de estado. Habilmente se
evita toda a discussão em torno deste espectro que então sacrificará todo o rio
Xingu com consequências não só para Altamira, mas também para todas as vilas
ribeirinhas e áreas indígenas nas margens do rio, chegando a atingir até a
cidade de São Félix do Xingu.
Cruzar os braços
Outro motivo de não
cruzarmos os braços são os mais de cinquenta (50!) processos que correm na
Justiça brasileira e internacional denunciando violações da Constituição
Federal e de tratados internacionais de que o Brasil é signatário. São ações
movidas pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública Estadual do
Pará como por entidades da sociedade civil, entre estas o Conselho Indigenista Missionário
– CIMI, organismo vinculado à CNBB. Estes processos estão, em parte há anos,
sem a Justiça tomar nenhuma providência. Quais são os reais motivos desta
morosidade? Omissão ou negligência são inaceitáveis num Estado que se diz
democrático e de Direito.
Finalmente, enquanto não
forem cumpridas todas – todas mesmo! – condicionantes exigidas pelo Ibama e
pela Funai como requisitos para dar início à construção de Belo Monte, não
deixaremos de denunciar a ilegalidade da obra.
IHU On-Line – Quais as principais alegrias e desafios de ser um
líder religioso em uma região como a do Xingu, onde a comunidade e a Igreja
estão divididas por causa de Belo Monte?
Dom Erwin Krautler – A
alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos
os povos (cf. Ad Gentes 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce
uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho. Esta missão não se
restringe a um mero anúncio de verdades. Evangelizar implica primeiramente no
testemunho de uma fé arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse
mesmo Deus é um Deus que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida.
Evangelizar é estar continuamente a serviço deste Deus, consagrando a vida a
Ele e a seu Povo, e isso sem medir esforços e alegar cansaço. “Amou-os até o
fim” lemos no Evangelho de São João para introduzir o episódio do lava-pés (Jo
13,1).
Evangelizar não exclui o
diálogo aberto, franco, respeitoso. Um monólogo autoritário é antievangélico
quando tenta arrasar com quem tem outra visão do mundo e condenar ao inferno a
quem não reza pela nossa cartilha. Como bispo tenho que conviver com diversos
pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à
minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da
posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando,
considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é
de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser. A decisão tomada pelos
governos Lula e Dilma de construir Belo Monte é imperdoável porque nunca haverá
uma chance mínima de reparar os erros monstruosos cometidos. Ao inaugurar Belo
Monte teremos alcançado um ponto sem retorno. Em outras palavras: não adiantará
mais chorar o leite derramado.
O cenário mudou
A Igreja, como o povo do
Xingu em geral, está dividida na avaliação de Belo Monte. No entanto, os que
defendem o projeto já não estão mais tão eufóricos como anos atrás quando
colaram adesivos “Queremos Belo Monte” em seus carros. Os adesivos desapareceram.
Os que aprovam o projeto, o fazem hoje com reservas e muitas exigências. Os
políticos há tempo desceram de seus palanques porque esgotaram os argumentos
bombásticos em favor do “progresso” que só Belo Monte seria capaz de trazer
para a região. Ensacaram a viola. Aliás Belo Monte nem sequer foi tema nos
comícios da última campanha eleitoral. Os candidatos bem sabiam por que
evitaram falar em Belo Monte. Iriam levar estrondosas vaias. Incrível com que
rapidez o cenário mudou. A tendência é que, na medida em que a obra avança, o
povo está se dando conta de que, até agora, nada ou muito pouco do que foi
prometido está sendo cumprido. Altamira, uma cidade de mais de 120 mil
habitantes, está mergulhado num tremendo caos. Os operários contratados pela
empresa CCBM logicamente apreciam ter encontrado emprego, se bem que seja
temporário. Mesmo assim há frequentes manifestações de insatisfação. Há até
operário preso. Com toda razão exigem melhores condições de trabalho e salários
que permitam enfrentar a inadmissível carestia que impera em Altamira.
As feições do povo que
frequenta as Igrejas em Altamira mudaram. Entre as (os) fiéis tradicionais
aparecem muitos rostos novos. São homens e mulheres, casais e famílias, que
vieram de outros estados e trabalham nas empresas ligadas à construção de Belo
Monte. Querem participar das celebrações e iniciativas de sua Igreja e tem todo
o direito de fazê-lo, mas é óbvio que não se manifestam contra Belo Monte ou
criticam o projeto, pois provavelmente correriam o risco de perder o emprego.
Enalterado, também dentro
da Igreja, ficou o grupo que categoricamente rejeita Belo Monte. Embora sejam
poucas pessoas em relação à grande massa que é indecisa e opta por uma posição
de aguardar “para ver como é que fica“, essa parcela do Povo de Deus mais ativa
e combatente não se deixa intimidar nem por ameaças, nem por calúnias,
difamações e outros tipos de perseguição.
IHU On-Line – Irmã Ignez Wenzel comentou sobre a desarticulação
entre as comunidades indígenas por conta das obras. Quais são as razões desse
comportamento? Pesquisadores, antropólogos e religiosos estão mais preocupados
com a questão indígena do que os próprios índios?
Dom Erwin Krautler – A
questão é complexa. É perigoso generalizar, afirmando que os indígenas estão
menos preocupados. Do mesmo jeito como em toda a sociedade do Xingu (do Brasil
e do mundo), há também entre os indígenas diferentes posições em relação a Belo
Monte. Religiosos, antropólogos, professores e outros profissionais conhecem
talvez melhor os meandros e as propostas insidiosas do sistema neoliberal que
está na base do “desenvolvimentismo” que confunde desenvolvimento com
crescimento meramente econômico, multiplicação de riqueza material, incremento
do PIB, expansão do agronegócio, aumento de produção de biocombustíveis. Os
indicadores sociais são colocados em um plano inferior. A defesa do meio
ambiente não passa de recheio nos discursos da presidente em Brasília para
impressionar quando fala na ONU e em outras oportunidades no exterior como há
poucos dias em Paris.
Essa realidade os
indígenas, pelo menos os velhos caciques, certamente nunca estudaram e por isso
não se dão conta do perigo que correm. No sistema vigente, o que importa é
produzir, lucrar, tirar vantagem, consumir. O “ter“ triunfa sobre o “ser“. Esse
sistema é cruel e diametralmente oposto ao que os indígenas andinos chamam de
Sumak Kawsay (ou “Bem Viver“). É um câncer que dissemina metástases em todo o
tecido social. E é uma ilusão pensar que os povos indígenas sejam imunes contra
este câncer. Todo o nosso empenho e acompanhamento visam ajudá-los a evitar a
contaminação.
Posições
Os Kayapó do Alto Xingu,
sob a liderança do cacique-patriarca Raoni Metuktire, rejeitam qualquer
barragem do rio. É para eles uma questão fechada. Só que Belo Monte é geograficamente
muito distante de suas aldeias e essas, na primeira fase da construção do
complexo hidrelétrico do Xingu, não serão impactadas diretamente. Por isso os
Kayapó do Alto Xingu não mais se manifestaram de modo tão contundente como
antes o fizeram quando Raoni mesmo veio a Altamira para prestigiar eventos
contra Belo Monte.
Outra é a situação dos
povos que vivem mais próximos ao canteiro de obras. Aí se percebe nitidamente
que a Norte Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que
se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que
nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia
e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé? Quem antes foi tratado como
pária e de repente avança para padrões de príncipe, dificilmente entende uma
advertência de que essas regalias são prejudiciais a ele e a seu povo. Na
realidade, o dinheiro fácil corrói a sociedade indígena, corrompe lideranças,
destrói a organização interna de um povo, faz os índios perder a sua
identidade. Tem sistema atrás disso. Quando os indígenas “deixam de ser
indígenas“ perdem também suas terras ancestrais, cobiçadas desde sempre pelas
mineradoras, pelos madeireiros e latifundiários. Chamo essa investida contra os
índios de “auricídio“ (do latim aurum: ouro).
Matam-se os indígenas com
dinheiro, entopem-se-lhes as gargantas com dinheiro a ponto de não mais poderem
gritar, implanta-se um consumismo desenfreado no seio das comunidades e
exterminam-se deliberadamente os valores e a sabedoria milenar de um povo. E o
pior é que se afirma em alto e bom som que tudo é feito “em favor dos índios
para tirá-los finalmente da era da pedra lascada“. Através do dinheiro se tenta
ressuscitar os parâmetros das antigas constituições brasileiras que defendiam
“a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional“, programa etnocida que
achávamos definitivamente superado com a Constituição de 1988.
IHU On-Line – O senhor voltou a dialogar com o governo na
tentativa de paralisar Belo Monte? Como vê, nesse sentido, a atuação do
Ministério Público Federal, que por vezes determina a paralisação da obra?
Dom Erwin Krautler – Já em
outubro 2009 percebi que o presidente Lula, embora tenha insistido em continuar
o que chamou de diálogo, na realidade não estava nada interessado em discutir
Belo Monte. Aliás o “diálogo“ de que ele falou não passou de encenação. Tentei
ainda um encontro com a Dilma. Fui informado que Gilberto Carvalho,
ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, estaria
disposto a receber-me em audiência. Mas poucos dias antes da data marcada para
a audiência ele discursou num encontro das pastorais sociais da CNBB e declarou
que Belo Monte era irreversível e irrevogável. O que ainda iria fazer no
gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração
do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a
audiência.
E o papel do Ministério
Público Federal? Das 15 ações judiciais contra ilegalidades no licenciamento da
construção de Belo Monte, encaminhadas pelo Ministério Público Federal, apenas
uma transitou em julgado. Este balanço revela a “importância“ que é dada hoje a
este órgão de defesa dos direitos constitucionais do cidadão. Às vezes me dá
até dó ver o esforço de nossos Procuradores da República. Será que não se
sentem supérfluos e inúteis dentro do poder Judiciário, que não aprecia o seu
empenho, engavetando sistematicamente as ações elaboradas com esmero e
competência?
IHU On-Line – Como o senhor vê a discussão acerca da mineração no
Norte e Nordeste? É possível dizer que Belo Monte servirá para facilitar a
mineração?
Dom Erwin Krautler –
Respondo com a pesquisadora Telma Monteiro, que colabora com o Xingu Vivo para
Sempre e quem estimo muito. Num artigo publicado no Correio da Cidadania
(11-09-2012) ela adverte que “a implantação do projeto da hidrelétrica Belo
Monte é a forma de viabilizar definitivamente a mineração em terras indígenas e
em áreas que as circundam, em particular na Volta Grande, trecho de mais de 100
quilômetros que vai praticamente secar com o desvio das águas do Xingu. E é
justamente nas proximidades do barramento principal, no sítio Pimental, que
está sendo montado o maior projeto de exploração de ouro do Brasil, que vai
aproveitar o fato de que a Volta Grande ficará seca por meses a fio com o
desvio das águas do rio Xingu“. Critica ainda: “Incrível como, além das
hidrelétricas, os projetos de mineração, na visão do governo federal e do
governo do Pará, também se tornaram a panaceia para solucionar todos os
problemas não resolvidos de desenvolvimento social. Papel que seria obrigação
do Estado, com o dinheiro dos impostos pago pelos cidadãos de bem“. Sempre o
mesmo lero-lero que já estamos cansados de ouvir: os problemas sociais da
Amazônia só poderão ser solucionados se, de mãos beijadas, a lotearmos e
entregarmos lote por lote a empresas estrangeiras. Desta vez a felizarda é a
Belo Sun Mining Corporation com sede em Toronto, Canadá, que em breve auferirá
lucros astronômicos rindo da cara dos brasileiros. E ainda há quem brada que a
“Amazônia é nossa“ e repete o discurso de Lula em 2007: “Precisamos dizer que
somos os donos da Amazônia e que sabemos cuidar das nossas florestas, da nossa
água, não precisa ninguém dar palpite”. Quem são realmente os donos? Sabemos
realmente cuidar das nossas florestas, da nossa água? Não seria mais correto
chorar desde já a mãe Amazônia pois ela foi vendida ao grande capital para ser
violentada sem escrúpulos até morrer de inanição!
IHU On-Line – Daqui dois anos o senhor enviará ao Papa o pedido de
renúncia, conforme denomina o Direito Canônico. O senhor já faz planos para os
próximos anos? Pretende continuar na região do Xingu?
Dom Erwin Krautler – O
Cânone 401 § 1 do Direito Canônico reza que o bispo “que tiver completado
setenta e cinco anos de idade, é solicitado a apresentar a renúncia do ofício
ao Sumo Pontífice, que, ponderando todas as circunstâncias, tomará
providências“. Em outra palavras: é o Papa que decide se aceita logo a renúncia
ou se pede ao bispo continuar por mais algum tempo. Não fiz nenhum plano para
“o dia seguinte“, mas tornar-se bispo “emérito“, logicamente não significa
“entregar os pontos“. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos
povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos
expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os
“excluídos do banquete da vida“ e minha defesa do meio ambiente, o “lar“ que
Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o fôlego.
IHU On-Line – Como é para o senhor viver no Brasil, especialmente
num estado em que há milhares de problemas sociais, ambientais, numa conjuntura
completamente diferente da sua origem?
Dom Erwin Krautler –
Cheguei a Altamira em dezembro de 1965, ainda jovem. A decisão pelo Xingu foi
uma decisão pessoal. Os superiores religiosos apenas concordaram e me deram luz
verde. Jamais me arrependi de ter feito esta opção. O Xingu tornou-se minha
terra, o chão em que vivo a minha vida. Não nego as minhas raízes e não deixei
de amar o país da minha família e de meus antepassados, mas nunca cultivei
saudosismos para com a terra onde nasci, avaliando o que na Áustria estaria
melhor ou analisando a conjuntura de lá, comparando-a com os problemas que aqui
enfrentamos.
Tempos atrás redigi uma
mensagem que muitas vezes já foi usada em celebrações de envio de missionárias
e missionários. Esse texto traduz o que ser missionário sempre significou para
mim:
“Vai meu irmão, minha irmã!
Lá, em tua nova missão, em tua nova terra, em tua nova pátria, anunciarás Jesus
Cristo e o seu Evangelho. Servirás aos pobres, aos excluídos do banquete da
vida, lavando-lhes os pés. Falarás com quem nunca andou ou não anda mais
conosco.
Aproximar-te-ás com muito
carinho a um povo com cultura e tradições diferentes. Chegando lá, estranharás,
sem dúvida, os costumes e usos locais. Mas, não imporás as tuas ideias! Não
apresentarás o país que te viu nascer como paraíso! Não dirás nunca que no
lugar onde te criaste, as coisas estão bem melhores!
Não darás nunca a impressão
de que vieste para ensinar, para civilizar, para instruir, para colonizar!
Jamais violentarás a alma do povo que, doravante, será o teu povo!
Oferecerás simplesmente o
testemunho de tua fé, de tua esperança e de teu amor, e darás a tua vida até o
fim, até as últimas consequências! Assim, tu terás o privilégio e a felicidade
de viver a graça de todas as graças: encontrarás o Senhor que disse: 'Depois
que eu ressuscitar, irei à vossa frente para a Galileia' (Mc 14,28). Missão é
sempre ir à Galileia, às Galileias de todos os continentes!“
IHU On-Line – Depois de todos esses anos na região, qual foi a
luta mais difícil na sua trajetória?
Dom Erwin Krautler – Sempre
lembro com carinho nosso empenho em 1987-1988 durante a Assembleia Nacional
Constituinte para que os direitos indígenas fossem inscritos na Constituição da
República. Foi uma luta sem tréguas, mas os povos indígenas e nós, os seus
aliados, saímos vitoriosos. Para quem quiser conferir, há um capítulo
específico na Carta Magna do País que fala “Dos Índios“ (Art. 231 e 232). Essa
luta, porém não terminou. Trata-se de concretizar o que está escrito aí.
A luta mais desgastante, no
entanto, é sem dúvida a que travamos contra a hidrelétrica Belo Monte, que já
dura tantos anos.
IHU On-Line – Estamos na época do Advento. O que esta época de
natividade, como nascimento de Jesus, pode trazer de reflexão para os dias de
hoje, para os governantes, especialmente em relação a Belo Monte?
Dom Erwin Krautler – Eu não
sei se o sentido profundo do Advento e Natal mexe com o coração de nossos
governantes, ministros e outros membros do governo. Talvez nem falem mais em
Natal. Preferem substituir a lembrança do Nascimento de Jesus com um termo mais
secularizado: “Festas de Fim de Ano“. E muito menos sei se esta gente, ouvindo
eventualmente o “Noite Feliz“, se lembra das famílias expulsas de suas terras
por causa de Belo Monte. Essas famílias não experimentam nada de noite feliz,
enquanto os responsáveis pela sua desgraça se banqueteiam em confraternizações
com as mais finas iguarias, regadas a bebidas seletas.
IHU On-Line – O que a experiência de Jesus Libertador pode ensinar
e inspirar a prática cristã de hoje?
Dom Erwin Krautler –
Responder a essa pergunta equivaleria a uma dissertação sobre os fundamentos e
toda a história da Teologia da Libertação e sua contribuição valiosa para a
Igreja na Amazônia, especialmente para as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs,
que continuam sendo o chão concreto em que esta forma de reflexão teológica até
hoje está dando seus frutos e que gerou seus mártires. Precisaria também
desmontar todos os mal-entendidos a respeito desta teologia, disseminados pelo
Brasil e mundo afora, especialmente em ambientes em que se fecham os olhos e se
tapam os ouvidos diante das injustiças de um sistema desumano, excludente,
opressor e de violências estruturais que causam a morte de tantos homens,
mulheres e crianças e do meio ambiente em que vivem.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Dom Erwin Krautler – Sim,
votos de um abençoado Advento e Santo Natal do Senhor. Que Deus nos conceda sua
graça e paz, neste Natal, durante o Ano Novo e sempre.
Fonte: Revista IHU On-Line e CIMI
Disponível em http://cnbb.org.br/site/imprensa/noticias/11064-belo-monte-e-de-todo-inaceitavel-e-ilegal-e-nunca-deixa-de-ser-diz-dom-erwin-krautler
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